Sou um parafuso triste. Minha tristeza é consequência das voltas cruéis que o destino dá, tantas voltas quanto as voltas de meu corpo hoje enferrujado.
Mas o começo parecia como o sonho dourado de todo parafuso. Fui produzido num lote alegre com meus irmãos e logo que iria ser embalado conheci o amor de minha vida, a porquinha linda que ao se envolver comigo, passamos a ser uma só pessoa, ou melhor, um só objeto.
Eu e minha porquinha fomos comprados por uma fábrica de móveis e instalados cuidadosamente num suporte de livros em um criado-mudo.
Passamos vários anos juntinhos naquele móvel, observando capas e contracapas de inúmeros livros, Garcia Marques, Raquel de Queiros, Machado de Assis, Érico Verissimo, Sidney Sheldon e muitos outros.
Ah! Como éramos felizes!
Contudo, a desgraça chegou quando o criado-mudo pegou cupim.
Aquelas larvinhas asquerosas comiam impiedosamente tudo o que viam. Dessa feita, fomos jogados em uma caçamba de entulhos e recolhidos pelo pessoal da reciclagem. O criado-mudo foi desmontado e esse dia foi o mais triste e tenebroso de minha vida espiralada.
Desrosquearam minha porquinha de meu corpo. Separaram sem nenhuma compaixão duas almas que se amavam perdidamente. Foi uma cena trágica, comovente e desesperadora.
Nunca mais vi minha porquinha. Não sei se foi jogada num monte de peças velhas ou para meu já quebrado coração se dilacerar de vez, foi rosqueada em outro parafuso qualquer.
Nunca mais encontrei outra porca como aquela, nunca mais senti aquele arrepio que descia de minhas espirais até minha ponta por outra porquinha.
Hoje sou um parafuso solitário, vivo essa desventura de seguir meu caminho sem ser envolvido por uma pequena porca maravilhosa.
Fui colocado para prender as duas partes do vitror de uma janela em um quarto escuro.
É aqui que contemplo minha vida e conto minhas aventuras e minha paixão a um novo e jovem criado-mudo ao lado de uma grande cama de casal.
Outro criado-mudo que silenciosamente ouve meus relatos e se emociona com as saudosas histórias de um parafuso triste que sofre por uma porquinha que ficou no passado e hoje é lembrança de um grande e inesquecível amor.
Por Rodrigo Alves de Carvalho