Em tempos de pandemia, uma provocação para pensar não faz mal a ninguém. Também queria fazer um trocadilho e ao mesmo tempo homenagear o escritor Augusto Monterroso parafraseando seu famoso microconto: “Quando ele acordou, o dinossauro ainda estava lá.” Autor de poucas palavras e grandes indagações.
Dinossauro, elefante, leão, cachorro, gato, girafa, rinoceronte, cavalo e por aí vai. Seja o bicho que for ou até um ser inanimado que se queira, porém a reflexão é para, no mínimo, buscar transformações na leitura de mundo, como dizia Paulo Freire. A sacada do autor está nas entrelinhas, ou seja, no que não foi dito e aí, a gente viaja na maionese. O dinossauro de Monterroso pode ser muitas coisas, pesadas ou não. Aí depende de cada um na leitura de mundo que se faz. Para mim... melhor deixar o dinossauro e ir para o meu elefante. O peso. Foi isso que senti numa bela aventura pelos Andes em Macchu Picchu em junho de 2017: essa aventura completa você pode conferir no meu conto “Os deuses nunca dormem”.
Foi lá no Peru, no último dia de viagem que tive um sonho revelador: a figura do meu pai veio nitidamente como num efêmero pesadelo. Era para me despertar e mostrar um novo caminho, sem medo e sem culpa. Culpa essa que por vezes pesava mais que chumbo nos pés. Por mais de 35 anos fui acorrentado nesse sentimento. Claro que inconscientemente eu vivia à margem de qualquer compreensão, quando focava apenas no pertencer, sem pensar no ser em detrimento do estar pela minha necessidade e pela vontade alheia.
A ausência materna, ainda na infância, me lançou num labirinto com algumas relações abusivas do feminino. Isso tanto na família quanto nas relações amorosas. Eu não era o protagonista da minha história. Sofria da síndrome do cachorro vira-lata e perdi quase meio século de vida na autopiedade. Aceitei papeis secundários e muitas vezes, não passava de um mero figurante, inclusive da minha própria vida. Assumo toda a culpa, sem arrependimentos, pois era assim que eu lia o mundo: sem consciência crítica das coisas e das relações. Só descobri a terapia na minha vida adulta e ainda assim, relutei para pegar o leme da minha história. Não funciona como uma chave que você vira. Leva-se tempo para começar a olhar para dentro, pois o medo se sobrepõe. Soma-se a isso um sentimento de culpa pelos erros e frustrações, tanto as minhas quanto as dos outros.
Foi libertador acordar no dia que deveria retornar para meu país, para minha casa e descobrir que o espelho não embaçava mais. Retornar era recomeçar, mas não do zero e sim com uma consciência ampliada. Não precisei fazer julgamentos, apenas ajustes no meu olhar. O mundo continuava sendo o mesmo, eu não. A pulsão de vida era música em meu peito. Desde então, um calendário da minha história foi se desenhando com um dia de cada cor, com notas sonoras e aromas dos deuses.
Aprendi a dizer não. Nessa nova percepção e nas sutis mudanças de comportamento eu me transformei em uma ovelha desgarrada. Foi o que disseram muitos dos familiares, dos poucos amigos e a maioria dos conhecidos. Tudo porque eu me neguei a manter um funcionamento que contemplava a vontade alheia. Essa coisa de “destino” ou “vontade” de deus, que nos falam dia a dia eu deletei do vocabulário. Então, virei a esquina da insipiência e andei na contramão para reconstruir a minha jornada, com novos valores e princípios. Senti-me mais leve. O amor me tocou nas pequenas coisas, no prazer de olhares despretensiosos, na importância de rituais, das celebrações, no caminhar sem pressa, lado a lado com quem me enxerga como eu sou. Não quero estar na frente e nem atrás, apenas ao lado e por vezes, parado em qualquer lugar, observando a beleza que é saber admirar e ser admirado sem cobrança e nem dor.
Não foi sorte, nem deus, mas uma leitura crítica do meu comportamento que me fez despertar e perceber que o elefante havia partido.
Mario Vicente