Era só mais uma criança da periferia. Uma criança de seis anos. O caçula de mais uma família marcada pelo ferro quente do ‘establishment’. Lucas, nome escolhido pela mãe que morreu na mesa de parto, quando não estava na escola passava o dia pelo terreiro brincando de sonhar. Às vezes, esquecia seus medos e se esgueirava pela comunidade em busca de algo que silenciasse o estômago. A irmã mais velha, Marluce, cuidava dos afazeres da casa, rezando, agradecendo, pedindo, esperançando e desistindo. Os outros irmãos, Uéslei e Dagoberto, iam à escola de manhã. À tarde circulavam pelo bairro em busca de aventuras e faziam de conta que procuravam serviço para ajudar o pai. Seu Durval, o único adulto da família que não conseguia, muitas vezes, suprir as necessidades mais básicas dos quatro filhos.
Lucas gostava da escola, mas não de estudar. Quando embirrava, nem se levantava da cama. A cama de solteiro que dividia com um dos irmãos. A outra, Marluce dividia também, enquanto o pai dormia na rede improvisada no barraco de dois cômodos: quarto e cozinha. Desde que a mãe faleceu, seu Durval não conseguiu manter o emprego de carteira assinada. A dor da sua perda não dissipava e nem diluía a cada copo (cada vez menor) de pinga que tomava na venda do bairro. Marluce, tentava fazer faxina nas casas do bairro, mas era rejeitada por causa da idade. 13 anos.
Na soma do seu infortúnio, ele frequentava mais a escola do que faltava. Melhor. Mas era a merenda escolar que fazia Lucas esquecer da sua fragilidade nos estudos, do bullying dos colegas e da própria escola, das tarefas que nunca conseguia finalizar. De tantas vezes que não podia tirar o boné pela infestação de ácaros e do sacrilégio que era desenhar no caderno a ‘família’ e expor uma realidade invisível. Na cantina, ele comentava orgulhoso com os irmãos quando repetia sua bandeja na fila da merenda como se tivesse conquistado um prêmio milionário.
Apesar de introspectivo era um menino dócil, amistoso e adorava jogar bola com a turma, mesmo quando ficava de fora, participava feito um torcedor aficionado. Havia um amigo de classe, o Samba, mais encorpado que ele, sempre na defensiva. A alcunha do amigo, diziam os mais atrevidos da sala que era pelo jeito de andar, como se ‘dançasse’. Samba se defendia e defendia Lucas quando alguém derrubava seu boné ou tiravam sarro do ranho que nunca secava em seu rosto.
Foi numa sexta-feira, fim de mês, que passei a observar o pequeno e assustado aluno. Ele se sentava no fundo da sala, no canto esquerdo, ao lado do amigo Samba. Era difícil fazê-lo participar das aulas, das tarefas e das interações com os colegas. É certo que a maioria não facilitava para fazê-lo se soltar e avançar nos estudos. Tinha um olhar perdido na janela, sempre absorto no canto de um passarinho ou relaxado à brisa da meia estação. Quando o sinal apitava, era como se Lucas estivesse sempre apostando corrida. E estava. Precisava ser o primeiro da fila na merenda. Nesse dia eu mudei meu olhar e passei a prestar mais atenção no comportamento de alguns alunos e não no só no aprendizado.
Ser Regente de Sala de Aula não é uma tarefa fácil. Crianças em início de estudo são hiperativas e é ali na escola que elas começam a socialização. A escola Zumbi dos Palmares é enorme, uma das quatro do Município que atende, principalmente, a população em estado de vulnerabilidade social. Precisamos ter coragem, determinação e verbas para manter o mínimo em funcionamento, pois em nosso país, até a educação vai na inércia da marginalidade.
Era aniversário de Lucas e nem ele, nem mesmo sua família lembrava da data. A escola instituiu, há muito, uma confraternização para os pequenos a cada fim de mês, reunindo os aniversariantes. No meio da tarde encerramos as atividades em duas salas de aula e fomos para um salão improvisado próximo à cozinha. Lucas estava eufórico, foi avisado dois dias antes. Ele correu avisar os irmãos que não mostraram muito entusiasmo, exceto Marluce.
— Ainda bem meu irmãozinho. Deus é pai! Aproveite a festa da escola. Ela disse com certo pesar por não poder fazer sequer um bolo simples em casa.
A festa não era unanimidade. Na sala de professores e reuniões de classes, muitos docentes sugeriam ampliar para outras séries se a escola conseguisse doações na vizinhança, com os pais e na prefeitura. Eu e a diretora nos negamos a mudar o formato. Enfatizei que caridade não resolveria o problema da diferença social e a prefeitura, bem ou mal, cumpria o seu papel. Cabia ao corpo docente lidar com a situação da melhor forma possível e pesar na balança a humanidade e o conhecimento. Claro que havia um ou outro professor do contra e até pais que torciam o nariz, mantendo seus filhos longe dos alunos mais carentes. Seguíamos, confiantes.
Quando a confraternização chegou, Lucas, sempre afoito, comeu bastante e tentou esconder comida nos bolsos. Então, o chamei de lado e lhe garanti que daria um potinho com doces e salgadinhos para ele levar aos irmãos no final da festa. Havia outros meninos parecidos, mas só ele destoava da turma. Nesse dia, o amigo Samba não veio à aula e Lucas ficou num canto esperando a festa acabar. Comecei a observá-lo melhor. Intrigou-me o jeito desconfiado. Manteve-se isolado. Pensei ter sido por não ganhar presente. Brincamos, cantamos e ainda assim ficou olhando ao redor. A diretora falou, com carinho, da importância de se pensar no coletivo, tanto na escola quanto na vida. Falou da família e foi breve. Lucas parecia inquieto quando despertava do seu anonimato infantil. A ansiedade o dominava.
Antes de terminar a festa, também fiz uso da palavra. Depois finalizei olhando em sua direção, buscando palavras cativantes, acolhedoras e mantendo um sorriso maternal. Nada me vinha à mente, senão encerrar com uma pergunta simples. Fiz na intenção de tirar o menino do fundo, onde sempre se metia, como um animal acuado das feras em nossa floresta de cimento.
— Então, Lucas, gostou da festa de aniversário? Não é um presente bacana para vocês?
Ele deixou a timidez de lado e veio para a frente, num rompante de fúria. Pensei que ia brigar com um coleguinha ou insultar uma de nós. Porém, ele respondeu com toda a sua força e determinação.
— Sim, professora, gostei. Mas falta outro presente. Ele respondeu, afoito.
— O que faltou para você Lucas?
— Eu queria uma enxada, professora. Todos ficamos boquiabertos com o desejo inusitado daquele menino. Na hora, umas crianças não perderam a oportunidade de tirar sarro do pedido dele.
— Aí Lucas, vai fazer buraco no asfalto? Ouvimos umas risadas pelo salão e a diretora mandou todos ficarem em silêncio. Perguntei de novo, em tom atencioso.
— Nossa, Lucas, bacana isso, mas por que você quer uma enxada?
— Quero ajuda meu pai a trabalha. Para faze assim, clapt clapt, clapt. Ele fazia gestos com as mãos como se capinasse e completou. — pra ajuda meu pai traze comida em casa.
Não consegui disfarçar surpresa. Surpresa comigo mesma de não enxergar o aluno além da educação, do acadêmico. Olhei para a diretora e nossos olhares captaram o grande abismo em que vivemos. Naquele momento sabíamos o que fazer, porém, alguém roubou a cena e tirou o foco do nosso encerramento quando uma voz, escondida na pequena multidão gritou.
— Que absurdo!