Na semana passada me lembrei de um episódio inusitado do primo Castilho com a minha namorada do final dos anos 1990. Não, não é um relato de traição. Ele era uma pessoa carismática por natureza e mantinha conversas animadas por horas. Simpático e inteligente para citar duas características. Era, porque nos deixou em 2021, no auge da pandemia, por falta de vacina e principalmente por falta de Governo. No atestado de óbito, quando tive acesso, penso que ele foi condenado pela tradicional classificação da ‘comorbidade’. Então, lembrei-me, com carinho, daquele concurso de dança que participamos no interior do Paraná quando me dei conta do preconceito estrutural em nossa sociedade. Inclusive eu, que assim o fui por anos.
O tal evento, já chego nele, imergiu em minhas memórias depois que recebi um convite por e-mail do Laboratório de jornalismo Enóis, para participar (online) do bate-papo sobre “Como o jornalismo patologiza e discrimina corpos gordos”. O meu primo foi a primeira imagem que me veio à mente ao ler o texto do convite onde fala da gordofobia, da discriminação, explicitando isso como um problema estrutural. Concordo. A nota jornalística nos lembra que a maioria dos veículos usa da narrativa de que um corpo gordo está sempre relacionado à doença ou em busca de emagrecimento. Enfim, não tive dúvida e respondi o e-mail confirmando minha participação que será no dia 14 de fevereiro pelo YouTube. Evento a parte, a situação que passei com o primo e minha namorada foi uma saia justa de me deixar perplexo.
Embora, Castilho fosse um jovem espetacular, que chegou a hipnotizar ouvintes com suas histórias e fantasias, ele, aos 23 anos, tinha dificuldades para namorar. Mesmo com o seu semblante alegre, no fundo, a sua autoestima se arrastava pelas ruas da cidade. E por onde eu andava nos fins de semana com a Valéria, geralmente, ele estava junto. Éramos íntimos os três, porém não a ponto de ele fazer aquele pedido insólito numa tarde de sábado.
— Dionísio, empresta sua namorada. Disse ele, em tom afirmativo na maior tranquilidade.
— Qual é Castilho, tá me estranhando, que intimidade é essa?
— Calma, primo. Eu só quero participar do concurso de dança de salão em Princesa do Oeste e a Valéria dança bem né? Ele justificou com aquele ar bonachão.
Valéria adorava dançar, porém, eu, sempre fui um dedão destroncado no salão. Tímido e travado a ponto de virar estátua, dançando a dois, até mesmo nas músicas lentas. Então, naqueles tempos, Castilho fazia as honras da dança de salão. Eu observava a beleza dela e sua desenvoltura. Algumas vezes, apresentávamos uma amiga para ele, mas sem sucesso. Ela me dizia que a maioria das suas amigas não gostava de ficar em nossa mesa devido à aparência do Castilho. O sobrepeso. Outras, até tentavam ficar um tempinho conversando, porém, logo vinha uma desculpa e o clima mudava. A frustração era evidente. Por isso, ela tentava levantar o astral dele e eu não me importava de vê-los se divertir na dança.
Depois de muito conversar e eu relutar no assunto, percebi que Castilho queria muito participar do concurso, porém, fiquei constrangido em falar com a Valéria. E quando decidi, meu primo já tinha comentado e ela, aceitado. Restou-me concordar com ambos e além de ficar feliz torcer para eles fazerem uma ótima apresentação. Senti certa apreensão, pois Castilho, apesar da desenvoltura, pesava 107 quilos e era mais baixo do que eu.
Princesa do Oeste fica a 320 quilômetros da nossa cidade. Eu me responsabilizei pela logística enquanto eles ensaiaram várias vezes na semana, se preocupando com o figurino. Lembro-me que eu vivia dizendo para ele viver sem se incomodar com os outros, ignorar o preconceito. Era fácil falar, apesar de que eu mesmo, inconsciente, já fui preconceituoso. E é assim que agimos, como se fosse natural. Fazer piada, dificultar a vida dessas pessoas e culpar como se fôssemos a elite da humanidade. Mas não. Hoje, não consigo conceber nenhum tipo de preconceito e vejo ser uma luta pertinente, por dignidade. Elas nos mostram que o problema continua latente, esfregando em nossa cara a realidade nua e crua e não conseguimos sequer ficar indignados. Uma lástima. Uma perversidade que nos joga aos tempos medievais ou num coliseu ‘moderno’ na era digital.
Castilho tinha boa desenvoltura no aspecto físico, nem sei como ele conseguia dançar (uma fala preconceituosa, proposital). Caminhava sem ofegar, jogava vôlei com a turma do bairro. E mesmo assim, a maioria observava-o com aquele olhar inquisidor, de menosprezo. Às vezes, me esquecia das circunstâncias e o deixava na inércia do preconceito em meio as falsas amizades. No fundo, eu silenciava, era um covarde e hoje justifico não ter tido consciência. É um problema estrutural assim como o racismo sempre fora.
A vida seguiu. Um dia, achei que encontrara a mulher ideal para ele. Maristela, uma morena de gênio forte. Eles teimaram numa relação que durou seis meses até que ela não segurou o comportamento preconceituoso. A máscara caiu.
— Você tenta ser simpático pra compensar a sua gordura, pra que isso, se rebaixar pra agradar os outros. E depois seguiu com outras ofensas. Castilho era carismático de forma natural. Isso eu tinha certeza, ele nunca quis agradar ou parecer simpático para a pessoa não reparar seu tipo físico. Ele brincava com o próprio peso. Foi a gota d’água.
E pensar que o sobrepeso dele era genético. O primo não era um comilão compulsivo e tinha um paladar de gourmet. Não comia pizza, adorava comida japonesa, tailandesa, enfim, além de ser uma pessoa agradável de conversar, sempre bem-humorado e natural, tinha elegância e se comportava feito um cavalheiro.
Meses após os ensaios e minhas tentativas de fazê-los desistirem, o dia do concurso chegou. Confesso que não fui aos ensaios, nem fiquei no pé da namorada para saber se era sério ou apenas diversão. Castilho estava determinado e Valéria, comprometida. Na época não tinha a febre das redes sociais e, por isso nem me dei ao luxo de filmar o concurso. Estava mais preocupado se ela não fosse passar vexame, pois minha ponta de preconceito estava latente em meus pensamentos. Segurei minha onda e fiquei num canto vendo as performances e tomando cerveja. Claro que desejei boa sorte aos dois e fiquei ali, na figa, sofrimento e torci, assim que vi os dois fazerem a primeira apresentação e deixar o público boquiaberto. Eu mesmo não acreditei. Meu primo era sensacional na condução da dança, flexibilidade e Valéria, ah! Minha namorada, como eu queria estar ali com ela, mas a dança não era meu forte.
Passaram na primeira seletiva, com a Valsa Vienense, não sei por que deram o número 24 para eles. Por sorte, Castilho não se incomodou com isso. Depois foram o Foxtrote, o Tango, o Samba, o Quickstep, o Cha-cha-chá, o Passo-doble, a Rumba e ufa, o Jive. Eu fiquei exausto, suei na cadeira. Eles deram conta e mostraram que uma mulher esbelta, bonita com um parceiro improvável, mais baixo, sobrepeso podem surpreender a todos, inclusive a mim. Na minha concepção eles foram os vencedores, porém, ficaram em terceiro lugar, isso porque o casal que seria escolhido caiu no final da apresentação. Aí não tinha como disfarçar a escolha. O casal do primeiro lugar, merecia um quinto. Percebi que tanto meu primo quanto minha namorada estava feliz com o troféu de terceiro colocado e voltaram para a mesa, contagiantes, que só puder abraçá-los numa confraternização familiar.
Aquela apresentação me fez despertar para minhas limitações. Naquele dia, eu decidi que poderia dançar também, não no nível deles, porém com o corpo relaxado e assim, acabei surpreendendo Valéria no meio da noite ao convidá-la para uma dança. Mas a surpresa foi que ao deixarmos o primo tomando uma cerveja e se refrescando das calorias gastas no concurso, uma moça, bonita e simpática, estava sentada ao seu lado numa conversa animada. Não demorou para vermos os dois no meio do salão feito um casal de cisnes num lago qualquer.
Hoje, não restam dúvidas sobre o preconceito do júri e de muitos ali presente. Por sorte, foi um evento maravilhoso, de resiliência. Foi nessa noite que tomei consciência do meu preconceito com um primo e desde então, tento um comportamento de humanidade, inclusive comigo mesmo e minhas deficiências. O melhor de tudo foi a parceira do Castilho daquela noite, Madalena. Ela tornou-se sua esposa e lhe deu um casal de filhos, porém, na pandemia ficou viúva de um ser humano fantástico. Castilho adorava assistir ao programa do Jô e sempre nos dizia, em tom de orgulho, ‘Viva o gordo’!